Escrito por Patrick Madrid e Pete Vere
Madrid é um renomado apologeta católico, e Vere (fig. abaixo) é um canonista e ex-adepto da FSSPX.
Os defensores do tradicionalismo radical frequentemente se refugiam na afirmação de que o Vaticano II foi um Concílio “meramente pastoral”, e, portanto, não poderia ser reconhecido como um concílio infalível. “O Concílio Vaticano II, como mero concílio pastoral” – dizem – “não rompeu com a Tradição? Além do mais, que sentença afirmativa o Vaticano II promulgou?” Essas são boas perguntas que merecem boas respostas. A natureza pastoral do Concílio Vaticano II é fonte de muita controvérsia entre muitos tradicionalistas. Na verdade, muitos católicos tradicionais que se reconciliam com a Igreja continuam duelando com esse questionamento mesmo depois de muito tempo após seu retorno à Igreja.
Felizmente, o Pe. Gerald de Servigny responde muitas dessas questões em seu livro “La Theologie de L'Euchariste dans le Concile Vatican II” (A Teologia da Eucaristia no Concílio Vaticano II), que está sendo traduzido por um dos autores para a língua inglesa. Pe. Servigny é um teólogo que traz tanto uma abordagem pastoral e uma reflexão teológica para a questão, e este capítulo não poderia ter sido escrito sem a sua ajuda. Somos gratos, tanto a ele quanto a seu editor, Pierre Teque Editeur, por nos permitir traduzir seu livro e citá-lo livremente neste capítulo (1).
Muitos tradicionalistas argumentam que o Concílio Vaticano II foi o primeiro e único concílio geral da Igreja a ser apresentado como concílio “pastoral”. Entretanto, o termo “pastoral” pode ser compreendido (e incompreendido) de diferentes formas. Quando aplicado ao Concílio Vaticano II, como aponta o Pe. Servigny, o termo “pastoral” deve ser entendido no contexto do que o Papa João XXIII pretendia quando convocou o Concílio. Este é um princípio bastante comum quando se trata de interpretação das ciências sagradas. Na verdade, é possível traçar um paralelo entre a abordagem do Pe. Servigny e o Cânon 17 do Código de Direito Canônico de 1983 (ou, já que o Código de Direito Canônico de 1983 não estava ainda em vigor quando o Papa João XXIII convocou o Concílio Vaticano II, o Cânon 18 do Código de Direito Canônico de 1917).
Pe. Servigny cita o seguinte parágrafo do discurso II do Papa João XXIII de abertura do Concílio Vaticano II: “é necessário que esta doutrina certa e imutável, que deve ser fielmente respeitada, seja aprofundada e exposta de forma a responder às exigências do nosso tempo. Uma coisa é a substância do « depositum fidei », isto é, as verdades contidas na nossa doutrina, e outra é a formulação com que são enunciadas, conservando-lhes, contudo, o mesmo sentido e o mesmo alcance. Será preciso atribuir muita importância a esta forma e, se necessário, insistir com paciência, na sua elaboração; e dever-se-á usar a maneira de apresentar as coisas que mais corresponda ao magistério, cujo caráter é prevalentemente pastoral.”(2)
Esse é um bom resumo de como o Papa João XXIII entendia o termo “pastoral” quando convocou o Concílio Vaticano II. “Pastoral” não quer dizer que o Concílio Vaticano II focalizou somente na disciplina pastoral da Igreja – aquelas normas e práticas sujeitas a mudanças com o tempo. Nem quer dizer que o Concílio Vaticano II ignorou o ensinamento da Igreja, uma vez que seus pronunciamentos tinham que estar baseados em algum ensinamento católico prévio para que pudesse ter status de um concílio geral da Igreja. Ao contrário, “pastoral”, neste contexto, significa tomar o magistério existente, perene da Igreja – aquelas matérias de fé e moral extraídas da Sagrada Escritura e da Sagrada Tradição – e colocando-as em prática de uma forma que desafie a sociedade hodierna e sua cultura em termos que possam ser compreendidos.
“Embora sejamos tentados a contrapor a natureza pastoral do Concílio Vaticano II com a natureza dogmática dos concílios ecumênicos anteriores”, alerta o Pe. Servigny, “pastoral e dogmático não são mutuamente excludentes. Um ensinamento pastoral é um ensinamento teológico, embora não esteja enunciado de forma puramente intelectual e reservada a teólogos. Melhor dizendo, é um ensinamento transmitido ao mundo cotidiano com a finalidade de alimentar espiritualmente os Cristãos e iluminá-los sobre o mistério de Deus. É este ensinamento que orienta os fiéis, dizendo-nos em que crer e o que devemos fazer para crescer em nosso relacionamento com Nosso Senhor Jesus Cristo.”
Em outras palavras, “pastoral” determina o status de uma doutrina em relação ao católico médio, dos bancos de Igreja. Não estudamos Deus em Seu benefício, mas em nosso. Estudamos o mistério de Deus para melhor entendê-Lo, para melhor amá-Lo e para viver Sua verdade mais plenamente. Por exemplo, teologia doutrinária nos ensina sobre o grande mistério da redenção de Cristo, enquanto a teologia pastoral nos ensina em colocar tal mistério em prática freqüentando o sacramento da confissão. A teologia doutrinária nos ensina sobre o mistério da transubstanciação durante o santo Sacrifício da Missa, enquanto a teologia pastoral nos ensina quando podemos e quando não podemos participar desse mistério.
Assim que o leitor compreende essa orientação pastoral do Concílio Vaticano II, Pe. Servigny apresenta a citação seguinte do Cardeal Yves Congar, O.P. – um dos muitos peritos em teologia convidados a participar do Concílio. “O que João XXIII denominou “pastoral” era doutrina, escreve o Cardeal Congar, “mas com expressão histórica, no tempo do mundo atual... é doutrinária, mas doutrina pastoral, ou seja, doutrina que pede para ser aplicada historicamente”.(3) O que Congar quer dizer é que, como Concílio pastoral, o Vaticano II buscou aplicar o magistério da Igreja no contexto da história contemporânea – tornar a doutrina da Igreja relevante para o mundo de hoje. Na encarnação, Cristo não tomou meramente nossa carne humana, ele também tomou sobre si nossos costumes, moral, cultura, e, no que se relaciona com a criação, tempo e espaço. Logo, a doutrina se aplica aqui e agora, por toda a expansão geográfica, numa era de tecnologia moderna e comunicação universal. A doutrina não é algo simplesmente restrito à população hebréia reunida nas redondezas de Jerusalém durante a era do Rei Herodes e Pôncio Pilatos.
O Pe. Servigny escreve:
Para Congar e para outros, doutrina pastoral é uma doutrina encarnada, não muito diferente de Nosso Senhor que se encarnou no ventre da Virgem Maria. Seu vocabulário também possui a habilidade de se renovar. Enquanto o ensinamento essencial da igreja não pode mudar de acordo com a época ou a cultura, a Igreja pode tornar este ensinamento mais acessível para os fiéis de acordo com o espaço e tempo, à medida que descobre melhores maneiras de expressar as verdades essenciais de nossa fé.
Portanto, não devemos confundir ensinamento pastoral com negligenciável, secundário, insignificante, nem devemos entendê-lo como inferior ao magisterial ou puramente doutrinário. Contudo, é assim que certos movimentos opositores têm compreendido errôneamente o Concílio, sempre com a intenção de combatê-lo. Para resumir brevemente seus argumentos, eles se opõem ao caráter pastoral do Concílio Vaticano porque sustentam que, sendo um concílio pastoral, o Vaticano II só assumiu um conteúdo disciplinar. Seguindo essa premissa falha, eles concluem que o Concílio Vaticano II obviamente não tem nada a ver com o ensinamento magisterial da Igreja.
Pe. Servigny então nos aponta para as visões seguintes, redigidas pelo Papa Paulo VI em uma carta resposta à crítica de certos textos conciliares tecida pelo Arcebispo Lefebvre: “Não se pode invocar a distinção entre dogmático e pastoral com a finalidade de aceitar alguns textos do Concílio e refutar outros”, explica o Santo Padre. “Certamente, tudo o que foi dito no Concílio não demanda um assentimento da mesma natureza; somente o que é afirmado como objeto de fé ou verdade ligada à fé, por atos definitivos, requer um assentimento de fé. Mas o resto é também uma parte do solene magistério da Igreja o qual todos os fiéis devem receber com confiança e aplicar com sinceridade.” (4)
Logo, mesmo o ensinamento mais puramente pastoral do Concílio Vaticano II pertence ao magistério da Igreja. Afinal, as três funções da Igreja são ensinar, governar e santificar. Enquanto cada uma dessas funções é única – como o Pai, o Filho e o Espírito Santo existem como pessoas únicas na Santíssima Trindade – elas são, contudo, inter-relacionadas. De forma similar, o ensinamento puramente doutrinário da Igreja é relacionado com como esse ensinamento é implementado. Em outras palavras, a função de governo da Igreja nunca está totalmente separada da função de ensino, e, portanto, os pronunciamentos do Concílio Vaticano II são ao mesmo tempo doutrinais e pastorais.
Pe. Servigny fala das implicações disso:
O Sumo Pontífice e os bispos, reunidos em um concílio, e subseqüentemente o Espírito Santo assiste o colégio de bispos, como sucessores dos Santos Apóstolos, em propor doutrina para a Igreja universal. Notável e interessante é a fórmula empregada pelo Santo Padre e os bispos ao assinar e promulgar o texto, a saber: “em virtude do Poder Apostólico a nós confiado por Cristo, juntamente com os Veneráveis Padres, no Espírito Santo os aprovamos, decretamos e estatuímos...”
PETE VERE |
Enquanto o peso de cada texto em particular produzido no Concílio Vaticano II possa variar, os documentos devem ser, contudo, recebidos e entendidos como ensinamento cogente (autoritativo) da Igreja. Os textos pastorais do Concílio Vaticano II carregam consigo o peso do colegiado de bispos ensinando em comunhão com o Pontífice Romano. Como se lê na Pastor Aeternus, a constituição dogmática do Primeiro Concílio Vaticano, sobre a Igreja,
(...) que o mesmo Pontífice Romano é o sucessor de S. Pedro, o príncipe dos Apóstolos, é o verdadeiro vigário de Cristo, o chefe de toda a Igreja e o pai e doutor de todos os cristãos; e que a ele entregou Nosso Senhor Jesus Cristo todo o poder de apascentar, reger e governar a Igreja universal, conforme também se lê nas atas dos Concílios Ecumênicos e nos sagrados cânones(...)devem-se sujeitar, por dever de subordinação hierárquica e verdadeira obediência, os pastores e os fiéis de qualquer rito e dignidade, tanto cada um em particular, como todos em conjunto, não só nas coisas referentes à fé e aos costumes, mas também nas que se referem à disciplina e ao regime da Igreja, espalhada por todo o mundo,(...)
Em resumo, a Tradição Católica sustenta que devemos nos submeter ao Pontífice Romano em questões de disciplina e governo, o que engloba a aplicação pastoral da doutrina, e não meramente nas questões de fé e mora. Como católicos, não podemos ser como Martinho Lutero, que, na Dieta de Worms, alegadamente afirmou “Eu não aceito a autoridade dos papas e concílios porque eles se contradizem mutuamente”.
A essa altura, é especialmente útil olhar para a tentativa de aplicação da doutrina do Concílio Vaticano II na prática pastoral. “Da primeiras linhas da Lumen Gentium, a Constituição Dogmática do Vaticano II sobre a Igreja”, escreve o Pe. Servigny, “o Concílio se posiciona em continuidade com os concílios ecumênicos anteriores. Sobre isso o claro testemunho no parágrafo de abertura da Lumen Gentium: “E, retomando o ensino dos concílios anteriores, propõe-se explicar com maior rigor aos fiéis e a toda a gente, a natureza e a missão universal da Igreja”.
Essa afirmação pode parecer incrível para alguns de seus companheiros tradicionalistas, mas o Pe. Servigny a fundamenta com fatos. Em termos de quantidade, o Concílio Vaticano II abundantemente cita seus imediatos predecessores – o Concílio de Trento e o Concílio Vaticano I. Realmente, cada um destes concílios é substancialmente citado vinte vezes no Concílio Vaticano II (5). “A primeira referência ao Concílio de Trento aparece no quinquagésimo quinto parágrafo da Sacrossanctum Concilium (A Constituição do Vaticano II sobre a Sagrada Liturgia),” nos ensina o Pe. Servigny, “em relação à comunhão nas duas espécies: ‘Os princípios dogmáticos que foram estabelecidos pelo Concílio de Trento permanecem intactos...’”. Essa é uma referência muito importante a um concílio anterior, uma vez que determina uma área concreta na qual o Concílio Vaticano II deve ser interpretado à luz do Concílio de Trento. Em resumo, os princípios doutrinários subjacentes ao foco pastoral do Concílio Vaticano II são aqueles do Concílio de Trento.
Fonte: VERITATIS SPLENDOR
(1) Fr. Gerald Beauchamp de Servigny, "Was Vatican II Merely a Pastoral Council?," traduzido por Pete Vere, Envoy Magazine, Vol. 7, No. 3, pp. 24-29.
(2) John XXIII, 11 October 1962, traduzido por Pete Vere.
http://www.vatican.va/holy_father/john_xxiii/speeches/1962/documents/hf_j-xxiii_spe_19621011_opening-council_po.html
(3) Yves Congar, Entretiens d'automne, Cerf, Paris, 1987, p. 13.
(4) Paulo VI, Carta ao Arcebispo Lefebvre, Nov. 10, 1976.
(5) Congar, Entretiens d'automne, op cit. p. 10.
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