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terça-feira, 19 de março de 2019

SACRILÉGIOS - SE DEUS NOS PUNE NESTA VIDA SERÁ PARA QUE ARREPENDAMOS.

O Castigo de um Sacrilégio

revolucionários
revolucionários
      Havia nos Pireneus um sábio e digno médico chamado Fabas. Não sei se este doutor ainda está vivo, mas foi ele quem me narrou o que vou contar-vos.
      O Dr. Fabas viu chegar ao Eaux-Bonnes um homem que tinha numa perna uma ferida produzida por um tiro. Embora antiga, a ferida apresentava um caráter particular: enchia-se de vermes.
      O doutor tentou fazer desaparecer ao menos os vermes, mas nenhum dos meios empregados surtiu efeito. Um dia o doente lhe disse:
      — Doutor, fiquemos por aqui. Não vos canseis mais. Estou condenado a morrer com esta chaga.
      — Na verdade — disse-lhe o médico — há aqui alguma coisa de extraordinário. Apesar de velho, é a primeira vez que vejo tal fenômeno, e muitos casos surpreendentes já presenciei.
      Pela vigésima vez, perguntou ao doente:
      — Onde recebeste essa ferida?
      — Em Espanha, como já vos disse. Mas ainda não vos contei o motivo por que não sararei, e desejo que o saibais.
      E contou-me o seguinte:
      Eu tinha 20 anos, e estávamos em 1793, quando fui obrigado a alistar-me num regimento que a convocação enviava à Espanha. Partimos três de nossa aldeia: Tomás, Francisco e eu. Estávamos eivados das idéias daquele tempo. Éramos incrédulos, ou antes ímpios, como três maus sujeitos que caprichavam por seguir a moda.
três amigos
      Alegres havíamos feito a viagem, e estávamos perto do fim, quando, ao atravessarmos uma aldeia, vimos uma imagem da Virgem, tão venerada, que apesar da revolução e dos revolucionários, escapara sem ser mutilada, sobre o seu pedestal na fachada da igreja.
      Um de nós teve a infeliz idéia de insultar essa imagem, com o fim de zombar da superstição dos aldeães. Como tínhamos as nossas espingardas, Tomás propôs-nos o fuzilamento da estátua. Francisco acolheu a proposta com uma estrondosa gargalhada. Timidamente, e receando mostrar-me menos corajoso do que meus companheiros, tentei dissuadi-los daquele propósito que me desgostava, ao lembrar-me de minha mãe.
      Tomás carregou a sua espingarda e atirou. A bala atingiu a estátua na fronte. Francisco fez o mesmo e a atingiu no peito.
      — Vamos — disseram-me eles. — Agora tu.
      Não ousei resistir, fiz a pontaria. Trêmulo, fechei involuntariamente os olhos, e a bala atingiu a estátua…
      — Numa perna? — perguntou o médico.
      — Sim, numa perna, por cima do joelho, no lugar onde estou ferido. Como vedes, não sararei mais…
      Depois desta bela proeza, íamos de novo tomar o nosso caminho quando uma mulher velha, que nos viu, disse:
      — Ides para a guerra, mas a ação que praticastes não vos tornará felizes.
      Tomás ameaçou-a. Eu estava pesaroso com nossa ação, e Francisco, menos preocupado do que eu, não estava porém disposto a divertir-se. Por isso impedimos o nosso companheiro de dar curso ao seu ressentimento.
      Terminamos depois, com mil dificuldades, a nossa jornada, e por mais de uma vez lamentamos a nossa sorte. Naquela mesma tarde entramos nas fileiras de nosso regimento. Passados alguns dias, tivemos um encontro com o inimigo. Confesso-vos que, quando entrava em combate, era sem entusiasmo, e instintivamente pensava na imagem da Virgem.
      Entretanto, tudo correu bem e tivemos uma vitória notável. Tomás distinguiu-se. A ação estava terminada, o inimigo derrotado, e o coronel acabava de suspender a marcha, quando um tiro partido de um rochedo — e parecia vir do céu — estrondeou. Tomás rodou sobre si mesmo e caiu fulminado, a face contra o solo. Francisco e eu corremos para o levantar, porém estava sem vida. A bala o atingira no meio da testa, entre os olhos, no lugar onde a bala de sua espingarda, alguns dias antes, tinha atingido a imagem. Francisco e eu, silenciosos, mais pálidos que a morte, olhamo-nos mutuamente.
dois amigos
dois amigos
      No barracão, Francisco estava perto de mim, mas não dormia. Esperava que ele me falasse, para lhe aconselhar que rezasse. Como porém ele guardasse silêncio, não ousei entabular a conversação sobre o pensamento que nos conservava acordados.
      No dia seguinte o inimigo voltou com força. Desde que o percebemos, Francisco deu-me um aperto de mão, dizendo:
      — É hoje minha vez. Quanto és feliz pela má pontaria!

      O desgraçado não se enganara. Desta vez fomos derrotados e tivemos que bater em retirada por muito tempo. Porém, Francisco e eu saímos incólumes. Vã esperança! Um tiro partiu de um fosso, onde jazia um espanhol mortalmente ferido, e Francisco caiu com o peito atravessado de lado a lado. Ah, Doutor, que morte! Rolava no chão, pedindo um padre. Os que estavam perto encolheram os ombros. Logo que expirou, deixaram-no no meio do caminho.
      Desde aquele momento, fiquei convencido de que eu não tardaria a ser ferido, e resolvi firmemente confessar o meu sacrilégio ao primeiro padre que encontrasse. Por infelicidade, não encontrei nenhum. Muitos fatos se passaram sem novidade, e pouco a pouco os meus terrores cessaram. Com eles desvaneceram-se as minhas boas resoluções.
      Quando fomos chamados à França, já havia sido promovido a sargento, e não pensava mais no crime, nem no arrependimento nem no castigo. Tudo, porém, me foi lembrado perto da fronteira, a um dia de caminho da aldeia da imagem. Por um acidente inexplicável, um tiro partiu de nossas fileiras e me atingiu onde estais vendo. Assim se cumpriu a profecia da velha, que nos tinha dito após o sacrilégio:
      — Ides para a guerra, mas a ação que praticastes não vos tornará felizes!

      Os meus dois camaradas morreram e eu estava ferido. Contudo, a princípio a ferida não apresentava mau aspecto, e como o cirurgião me dissesse que em breve sairia do hospital, cheguei a convencer-me disso. Qual não foi meu pavor e a surpresa dele, quando viu que esta chaga estava minada destes vermes que têm resistido à vossa ciência. Há vinte anos, Doutor, que tenho esta ferida. Experimentei todos os remédios, e nenhum deu resultado. Embora eu peça a Deus a cura, não devo lastimar-me e nem me lastimo. Esta ferida tem sido um remédio para muitas almas, e para a minha sobretudo.
soldado1808
      Sei que se chegar ao fim de minha vida como é preciso que chegue — isto é, cristão e penitente — devo-o à minha terrível ferida. Então terei ocasião de me alegrar por ter ficado coxo. Porque, se duvido da cura, não duvido da misericórdia, e espero firmemente morrer na graça de Deus por intercessão daquela que ultrajei.


(Luiz Veuillot, “Cá e Lá” – Livro VII)

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