Fui surpreendido, durante o final de semana, com a afirmação de que o Papa havia elogiado Lutero. Não dei muita atenção à notícia que, imediatamente, rechacei como estapafúrdia. Afinal de contas, Lutero fora um monge sem vocação, perturbado, entregue escancaradamente aos prazeres da carne e que (talvez numa tentativa de tranquilizar a própria consciência) inventou uma teologia satânica onde pudesse salvar-se sem precisar abandonar os seus pecados – arrastando assim para o Inferno uma multidão incomensurável de almas.
Só depois eu li as matérias da mídia e (principalmente) as fontes primárias. Divertiu-me principalmente esta notícia, onde o jornalista não faz a menor idéia do que está falando. Misturando gafes históricas imperdoáveis (diz que «[o] papa Leão 9 expulsou Lutero da Igreja Católica Romana em 1521», quando Leão IX morreu em 1054 e o Papa que excomungou Lutero foi na verdade Leão X) com uma interpretação louca do discurso do Papa no convento de Lutero, o texto termina sem dizer nada com nada. Isto aqui, p. ex., é de um nonsense cômico:
Os protestantes gostariam que os católicos dissessem que Lutero não era um herege, mas um grande teólogo cristão. “Seria bom se eles pudessem declará-lo um doutor da Igreja”, disse à Reuters a bispa luterana de Erfurt, Ilse Junkermann.
É óbvio que os católicos não podem dizer que monge apóstata alemão é “um grande teólogo cristão” (!), e nem muitíssimo menos pode a Igreja declarar “doutor da Igreja” (!!) um heresiarca. A idéia é francamente tão absurda que, por si só, revela o vergonhoso desconhecimento da Igreja Católica do responsável pela matéria. E, ao final, ainda sou obrigado a ler que «[n]ão está claro se o Vaticano, que não gosta de oficialmente desfazer iniciativas de papas anteriores, pode ou deseja ir tão longe como a reabilitação de fato de Lutero» – cáspita, isto só não está claro para o retardado que escreveu esta reportagem! Pois qualquer pessoa normal e que conheça um mínimo de Doutrina Católica sabe que a Igreja não retrocede em questões doutrinárias e – mais que isso! – que Ela não pode retroceder, sob pena de perder a própria identidade. E, sim, isto está claro como o sol ao meio-dia para qualquer pessoa que não seja cega.
Depois da diversão, fui às fontes primárias. Está aqui o pronunciamento de Sua Santidade no Augustinerkloster de Erfurt – o convento onde Lutero viveu como monge agostiniano antes de romper com a Igreja. E descobri que o Papa “elogia” sim, Lutero, naquilo que ele é elogiável; para, imediatamente depois, criticá-lo acidamente no que ele precisa ser criticado.
Bento XVI e os representantes do Conselho da
Igreja Evangélica Alemã após encontro em Erfurt |
O que o Papa faz? Ora, sabe-se que Lutero levou uma vida imoral e dissoluta, não obstante a sua doutrina possua elementos de verdade capazes de seduzir os incautos (como de fato tem seduzido nos últimos séculos); então o Papa fala que a espiritualidade de Lutero era cristocêntrica, mas que isso não é suficiente: «Mas isto pressupõe que Cristo seja o centro da nossa espiritualidade e que o amor por Ele, o viver juntamente com Ele, oriente a nossa vida». Coisa que todos sabem que Lutero não fez. Dizer que é necessário que o viver juntamente com Cristo – i.e., o viver em estado de Graça, o viver praticando a virtude e evitando o pecado – oriente a nossa vida… eu não consigo pensar em uma forma mais elegante de contrariar os seguidores do Sola Fide, aqueles cuja doutrina tem por princípio fundamental justamente que o que importa é no quê se crê, e não como se vive. Bento XVI só “elogia” Lutero para, imediatamente em seguida, demonstrar a falsidade do luteranismo.
E assim caminha o Papa, construindo com maestria a ponte entre ele e os luteranos ao aludir aos problemas do luteranismo sem bater (muito…) de frente com a figura de Lutero; permitindo-se até mesmo apontar os pontos problemáticos do protestantismo a partir de algum aspecto mais aceitável do monge alemão. Para, no final, pedir o óbvio: que os protestantes se convertam. E de um modo tão gentil que se torna quase impossível negar, digno de um diplomata experiente tratando de um assunto espinhoso: «E por isso Lhe pedimos a graça de aprender de novo [a] viver a fé, para assim nos podermos tornar um só».
É com este pedido que termina o discurso do Papa: pedindo a Deus para que católicos e protestantes possam se “tornar um só”. E como tal é possível? Obviamente não é possível condescender com a Fé legada pelos Apóstolos, com a Fé Católica que a Igreja guarda. Isto o próprio Papa disse com todas as letras, na celebração ecumênica feita pouco depois no mesmo convento de Erfurt:
Papa pronuncia discurso na Igreja do ex-Convento dos Agostinianos, em Erfurt. Abaixo, concede a bênção, ao lado do pastor luterano Nikolaus Schneider
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E, se não é possível transigir com a Fé, então a unidade na Fé só é possível com a conversão dos transviados. Sim, que os filhos de Lutero possam abjurar os seus erros e receber de novo a Fé Católica, a Fé Verdadeira, a Fé sem a qual é impossível agradar a Deus. Que sejam profícuos os esforços ecumênicos de Sua Santidade! Que o filho pródigo caia em si e, cansando-se de comer a lavagem dos porcos, volte depressa à Casa Paterna – onde Deus o espera com festa.
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