Um testemunho do Milagre do Sol: “Se não fosse católico, nesse momento ter-me-ia convertido”.
Bernardo Motta reuniu em livro cerca de centena e meia de testemunhos do Milagre do Sol. O livro sai no último dia das celebrações do Centenário das Aparições de Fátima. Leia aqui um dos depoimentos.
Por Observador, 12 de outubro de 2017 –
Há 100 anos, a 13 de outubro de 1917, dezenas de milhares de pessoas assistiram, à hora prevista, ao chamado “Milagre do Sol” — um sinal pedido a Nossa Senhora por irmã Lúcia, três meses antes, para que todos acreditassem nas aparições de Fátima. Bernardo Motta recolheu cerca de centena e meia de depoimentos de testemunhas oculares, que transcreveu e reuniu num livro. O Milagre do Sol segundo testemunhas oculares chega às livrarias esta sexta-feira — o dia em que se encerram as celebrações do Centenário das Aparições de Fátima.
O Observador pré-publica um desses depoimentos: o de Luís António Vieira de Magalhães e Vasconcelos.
«Depoimento que faz pela sua honra e pela sua fé de cristão, Luís António Vieira de Magalhães e Vasconcelos, solteiro, advogado e oficial do registo civil no concelho de Vila Nova de Ourém, sobre os factos ocorridos nas proximidades do lugar da Fátima, deste concelho, no ano de 1917. Já há meses corriam variadas versões de que a Virgem Nossa Senhora aparecia nas proximidades do lugar da Fátima a umas pequenas pastoras. Eu tinha conhecimento dessas versões e sabia que era grande a afluência de gente de várias categorias sociais ao local indicado pelas referidas pastoras, principalmente nos dias 13 de cada mês, pois eram os dias em que estas diziam que se davam as aparições. Tais boatos começaram a interessar-me e por esse motivo pretendi então informar-me do que se passava. Falando com algumas pessoas que lá tinham estado no dia treze de setembro, umas declararam-me que nada tinham visto, outras que tinham visto uma estrela, outras faziam descrições fantásticas. Tão pouca uniformidade havia nos seus depoimentos que me convenci de que se tratava de uma “blague” sem o menor fundamento. Esta minha convicção mais se avigorou, quando dias depois falei com um venerando sacerdote deste concelho, que me disse ter sabido casualmente que as pequenas pastoras tinham em casa um livro onde se descreviam os milagres de Nossa Senhora de Lourdes e da Virgem de La Salette. Este venerando Sacerdote mostrava-se pouco inclinado a acreditar na sinceridade das revelações feitas pelas pequenas.
Escrupulosamente, conservava-se na expectativa, alheio a tudo, como alheio a tudo se tem conservado e conserva o clero deste concelho. Pela minha parte pensei então que a imaginação das crianças podia deixar antever toda a possibilidade de uma visão irreal, meramente subjetiva. Podia também tratar-se de uma mistificação de intuitos espetaculosos ou lucrativos e por isso entendi que era dever não me fazer eco desses boatos que visavam um assunto tão grave e tão melindroso. Com o insucesso só a Nossa Religião poderia perder.
Por isso, quando se falava no caso, de aí em diante, mostrei sempre mais descrença do que expectativa. Foi nestas disposições de espírito que eu, no dia 13 de Outubro, próximo passado, pela primeira vez me dirigi para o local das aparições. Era curioso; não era um romeiro. Na véspera e antevéspera desse dia, e mesmo durante a noite, eu vi uma enorme multidão atravessar esta vila em direção à Fátima. De longes terras vinham ranchos de camponeses, na sua maior parte descalços, que cheios de fé e devoção atravessavam esta terra, entoando cânticos religiosos como o “Bendito” e o “Queremos Deus”. Alguns com quem falei já vinham de catorze léguas de distância, mortos de fome e de fadiga, mas mostravam-se esperançados e contentes. Estes eram por certo os romeiros. Veículos de toda a espécie, desde a carroça desconjuntada até à “limusine” perfumada, atravessavam também a terra numa fila interminável. Estes últimos eram talvez na sua maior parte os curiosos, os “mirones”. Tive informações de que nas estradas de Torres Novas e de Leiria a concorrência foi igual. Como atrás deixei dito, no dia 13 parti para o local das aparições, logo de manhã, às oito horas, aproximadamente. Acompanhavam-me meus irmãos António e Fernando. Logo à saída daqui, a chuva começou caindo copiosamente, tornando as estradas num contínuo lamaçal. O vento soprava rijo, principalmente nas alturas da serra da Fátima. Pelas estradas continuava ainda enorme concorrência. Passamos ao lugar da Fátima e seguimos pela estrada que liga este lugar com a vila da Batalha. A chuva continuava caindo torrencialmente. À distância de um quilómetro, aproximadamente, vimos uma multidão de muitos milhares de pessoas que de preferência se aglomerava nos outeiros. Seriam trinta mil pessoas, seriam cinquenta mil? Ninguém o poderia dizer ao certo. Parámos. Centenas de carros e automóveis, pejavam por completo a estrada enlameada. No fundo do vale, por entre a multidão, consegui divisar uns toscos postes de madeira clara que se assemelhavam a um trapézio, os quais eram encimados por uma pequena cruz, segundo depois observei de mais perto. A chuva era agora menos intensa.\
O sol continuava escondido entre grossas nuvens pardacentas. Em volta do trapézio a que me referi, aglomerava-se um numeroso grupo. Era o local indicado pelas pastoras, no qual se concentravam todas as atenções. A paisagem naquele ponto é agreste e nada tem de interessante. Montes na maior parte cobertos de pedra e urze. Alguns carvalhos e azinheiras de pequeno porte alternam com um pinhal escasso que fica para os lados do nascente. Aqui e além, baixas paredes de pedra solta, quase desmoronadas, afirmam alguma estrema. Encontrei nessa ocasião, bastantes pessoas das minhas relações tanto de Lisboa como de vários pontos afastados daqui. Quase todas perguntavam a minha opinião, talvez com particular interesse, por saberem que vivia nesta região. A todas respondi, sorrindo incredulamente, que tudo era uma “blague”. “Que como católico, me não repugnava acreditar na possibilidade de um milagre mas que por isso mesmo que era católico, é que não acreditava, enquanto esse milagre se não operasse por uma forma evidente, inconfundível. Que o próprio clero do concelho duvidava também, segundo me constava”. Entre outras pessoas, lembro-me que disse isso à esposa do Snr. Emílio Infante da Câmara, de Vale de Figueira e a seus filhos Emílio e José, ao Dr. Gualdim de Queirós, de Cernache de Bonjardim, ao Snr. José Rino de Alcobaça e a sua esposa, a Senhora Dona Capitolina Guimarães Rino. Tentei aproximar-se do ponto onde estavam as pastoras que era junto do trapézio a que me referi anteriormente, a uns duzentos metros da estrada, mas não o consegui, tão compacto era o círculo de gente que se formava em volta delas. Assim não as consegui ver nem ouvir nessa ocasião; percebi apenas que oravam.
Voltei para cima, para a estrada, e aproximei-me do Snr. José Rino e de sua esposa que estavam junto da sua “limusine” conversando com várias pessoas. Foi então que estes meus bons amigos que desde criança me conhecem pediram a minha opinião que lhes manifestei pela forma que anteriormente expus.
Mostraram-se quase indignados e disseram-me “que para eles não restava a menor dúvida de que se tratava de um milagre, pois que eles já anteriormente, no dia 13 de Setembro último, ali tinham estado e tinham presenciado no sol extraordinários fenômenos luminosos, precisamente à hora indicada pelas pastorinhas; que o clero não estava bem informado e que, se eu duvidava, que esperasse”. Como insistir seria inconveniência, calei-me, mas fiquei absolutamente convencido de que nada veria. Recordei então, como já por várias vezes tinha recordado aquele princípio de Gustave Le Bon que se resume à corrente hipnótica que a domina. Era preciso precaver-me, não me deixar influenciar. Esse meu amigo, tirando o relógio disse-me: faltam cinco minutos, à uma hora olhe para o sol, foi a hora anunciada pelas pastorinhas, depois me dirá. Isto surpreendeu-me pois que para onde eu tencionava olhar e para onde eu julgava que todos olhariam era para o local onde se encontravam as pastoras. Constava-me que elas tinham afirmado que nesse dia se daria uma coisa que depois disso ninguém poderia duvidar. O céu nesse momento estava duma cor plúmbea. A chuva tinha parado. O sol não se via, encoberto pelas nuvens, e ninguém diria que ele tornaria mais a aparecer nesse dia tão chuvoso e tão desabrido. À uma hora em ponto, ouço um grande clamor. Esses meus amigos gritam-me: olhe, olhe, mas eu a princípio apenas via nuvens correndo ligeiras deixarem o sol a descoberto. De repente vejo uma orla intensamente cor-de-rosa, circundar o sol que se assemelhava a um disco de prata fosca, como já alguém disse, ao mesmo tempo que me dava a impressão de que este se deslocava da sua primitiva posição. Nuvens diáfanas, vaporosas, um tanto roxas, um tanto alaranjadas, perpassavam. Em vários pontos da linha do horizonte, contrastando com a cor plúmbea do céu, eu vi também manchas cor-de-rosa e amarelas. O clamor cada vez era maior. Isto não durou segundos: durou talvez minutos. Ao observar estas manifestações, que não duvidei um momento fossem devidas à Infinita Omnipotência de Deus, uma indescritível impressão se apoderou de mim.
Sei apenas que gritei, creio, creio, creio, e que as lágrimas caíam dos meus olhos, maravilhado, extasiado, perante essa demonstração do Poder Divino. Sei também que não senti a menor sombra de receio ou terror. Se não fosse católico, nesse momento ter-me-ia convertido. Lembro-me também que não ajoelhei mas a maior parte das pessoas caíram de joelhos sem se importarem com o enorme lamaçal. Então estes fenómenos escapam à previsão da ciência e não escapam à previsão de umas pequenas pastorinhas da serra, que os anunciam com uma precisão verdadeiramente matemática?!… Demais, sendo eles tão deslumbrantes, tão maravilhosos?!
Fui procurar meus irmãos que me disseram ter presenciado o mesmo, assim como as restantes pessoas que encontrei, variando um tanto as descrições do que observaram no sol. Às pessoas a quem tinha classificado o caso de “blague” disse-lhes o que vira e que estava agora absolutamente convencido de que estávamos em face de um milagre. O astro-rei brilhava agora intensamente e não mais deixou de brilhar nesse dia, assim como não tornou a chover. Quase no momento da partida encontrei o meu amigo Emílio Infante da Câmara que me disse ter ido ver as pastoras e que estas tinham dito: que a guerra acabaria brevemente, ou que acabaria de ali a oito dias (não posso precisar). Disse-me também que elas estavam vestidas com “toiletes” de primeira Comunhão. Começava a debandada. Regressamos a casa.
Algumas semanas depois voltei ao local das aparições para entrevistar as pastoras. Desejava conhecer essas crianças. Acompanharam-me minha mãe, a Baronesa de Alvaiázere, minha irmã, Maria Celeste, e o meu particular amigo Conde do Juncal, e sua Ex.ma Mulher, que então eram nossos hóspedes. Junto da Igreja da Fátima paramos e pedimos que nos dissessem onde se encontravam as pastorinhas. Disseram-nos que deviam estar no local das aparições e que o Pastorinho que as acompanhava e a quem a Virgem também aparecia que estava ali próximo e que o iam chamar. Pouco depois apareceu este.
Era uma criança de dez a doze anos, trajando à moda do campo, bastante alegre e despreocupado, ao que parecia. Convidamos o pequeno a acompanhar-nos ao que ele se prontificou logo, saltando sorridente para o automóvel que nos conduzia. Fizemos-lhe várias perguntas mas ele sorria mais do que falava, mostrando-se muito deslumbrado com as várias peças do automóvel. Junto do local, em frente de uma mesa de madeira bastante velha, onde estava colocado um Crucifixo, várias pessoas oravam. Lá estava o tronco da azinheira cortada e os tais postes de madeira dos quais pendiam duas lanternas de lata. Ajoelhamos e rezamos também. A pequena Lúcia, aquela a quem a Virgem aparecia, conversava a certa distância com alguns forasteiros. Esperamos que estes a deixassem e aproximamo-nos dela. Esta era uma criança dos seus doze anos, de feições grosseiras e de cor muito macilenta. Estava vestida pobremente, à moda do campo, tendo ao peito uma pequena flor de papel vermelho e nas mãos um pequeno cofre, onde tilintavam algumas moedas. Tinham um ar tristonho e sombrio. Narrou-nos a aparição da Virgem da forma que já é de todos conhecida. Que a Virgem lhe dissera “que nós tínhamos ofendido muito a Deus e que nos emendássemos”. “Que fizéssemos ali uma capelinha e que lhe pusessem o nome da Senhora do Rosário”. “Que a guerra acabaria em breve”. Perguntando-lhe minha irmã o que vira ela no sol na ocasião do milagre, respondeu “que vira S. José”. Perguntei-lhe também se ela não tinha receado que se não desse o milagre pois que o povo a poderia matar julgando que ela estivesse enganando todos, disse-me com certa energia “que sabia que o milagre se daria e que por isso nem em tal perigo tinha pensado”. Disse-nos também que já tinha anteriormente ouvido contar os milagres da Senhora de Lourdes. Uma mulher que dizia ser tia dela auxiliava-a algumas vezes nas respostas e fazia várias considerações sobre um segredo que elas tinham e que a ninguém o revelavam embora já lhes tivessem feito vários prometimentos sedutores e até as tivessem ameaçado de que as deitariam a um poço ou de que as queimariam se elas o não revelassem.
Disseram-nos ainda que as esmolas que recebiam eram para a construção de uma capela e que dessas esmolas era depositária outra mulher que ali se encontrava. Informaram-nos também ali que a pequena se encontrava fatigadíssima com a constante série de perguntas que toda a gente lhe fazia. A referida pequena, umas vezes me parecia concentrada, outras vezes me parecia distraída. Devo declarar que a impressão que me deixou não foi boa, ou foi pelo menos muito diferente da que eu esperava. Uma criança cheia de lógica, de coerência e de perspicácia seria também de recear. Se apesar dessas aparências estava ali uma criatura escolhida por Deus para uma tão assombrosa revelação, não posso eu dizê-lo. No regresso, paramos novamente junto da Igreja da Fátima; ali conseguimos falar à outra pequena, cujo nome não me recorda. Subiu ao estribo do automóvel que nos conduzia mas não conseguimos arrancar-lhe uma palavra por mais diligências que empregamos para esse fim. Tinha esta aspeto muito jovial e uns olhos expressivos. Devia ter sete ou oito anos de idade. Do que venho expondo concluo duas coisas que pelos menos aparentemente brigam uma com a outra. A primeira: se Deus não quisesse mostrar a todos os que foram ao local das aparições, que eram exatas as revelações feitas pelas referidas pastoras, teria a Sua Infinita Omnipotência impedindo que se dessem essas deslumbrantes manifestações tão extraordinárias no Sol e no Céu, as quais toda a gente que estava nesse local, observou no dia 13 de Outubro, próximo passado, e que foram anunciadas pelas mesmas pastoras, e só por estas, com grande antecedência e com uma precisão da hora e local absolutamente matemáticas. A segunda: tendo as mesmas pastoras declarado que a Virgem Nossa Senhora lhes dissera que a guerra acabaria brevemente e sendo certo que esta ainda não acabou, teremos de concluir que as pastoras faltam à verdade, pois a Virgem é que por certo se não enganava, nem tal é admissível. Que se referiam à guerra europeia, não há dúvida pois que, segundo ouvi dizer, as referidas pastoras ainda acrescentaram que os nossos soldados em breve regressariam à pátria, mas não poderá o advérbio brevemente ser tomado numa acepção mais lata e não poderá assim referir-se a um período de tempo maior dos que os três meses que aproximadamente já decorreram? Não podia haver qualquer equívoco por parte das mesmas crianças na interpretação das Expressões Divinas? Que o digam aqueles que têm de proferir o seu “veredictum” sobre este assunto gravíssimo, porque se assim fôr, por completo desapareceram todas as contradições para só ficar de pé em todo o seu esplendor a minha primeira conclusão, isto é, a de que as pastorinhas falam verdade e se estas falam verdade não pode haver dúvidas de que foi um milagre o que se deu no dia 13 de Outubro próximo passado, nas proximidades do lugar da Fátima. Não cabem nos moldes deste depoimento quaisquer considerações científicas ou filosóficas e por isso me limitei a narrar circunstanciadamente o que vi e observei, com toda a exatidão e com toda a imparcialidade, desapaixonadamente, o que mais uma vez juro pela minha fé de cristão e afirmo pela minha honra.
Vila Nova de Ourém aos trinta de Dezembro de mil novecentos e dezassete.
Luís António Vieira de Magalhães e Vasconcelos
Nenhum comentário:
Postar um comentário