O Castigo de um Sacrilégio
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revolucionários
Havia nos Pireneus um sábio e digno médico chamado Fabas. Não sei se este doutor ainda está vivo, mas foi ele quem me narrou o que vou contar-vos.
O Dr. Fabas viu chegar ao Eaux-Bonnes um homem que tinha numa perna uma ferida produzida por um tiro. Embora antiga, a ferida apresentava um caráter particular: enchia-se de vermes.
O doutor tentou fazer desaparecer ao menos os vermes, mas nenhum dos meios empregados surtiu efeito. Um dia o doente lhe disse:
— Doutor, fiquemos por aqui. Não vos canseis mais. Estou condenado a morrer com esta chaga.
— Na verdade — disse-lhe o médico — há aqui alguma coisa de extraordinário. Apesar de velho, é a primeira vez que vejo tal fenômeno, e muitos casos surpreendentes já presenciei.
Pela vigésima vez, perguntou ao doente:
— Onde recebeste essa ferida?
— Em Espanha, como já vos disse. Mas ainda não vos contei o motivo por que não sararei, e desejo que o saibais.
E contou-me o seguinte:
Eu tinha 20 anos, e estávamos em 1793, quando fui obrigado a alistar-me num regimento que a convocação enviava à Espanha. Partimos três de nossa aldeia: Tomás, Francisco e eu. Estávamos eivados das idéias daquele tempo. Éramos incrédulos, ou antes ímpios, como três maus sujeitos que caprichavam por seguir a moda.
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Alegres havíamos feito a viagem, e estávamos perto do fim, quando, ao atravessarmos uma aldeia, vimos uma imagem da Virgem, tão venerada, que apesar da revolução e dos revolucionários, escapara sem ser mutilada, sobre o seu pedestal na fachada da igreja.
Um de nós teve a infeliz idéia de insultar essa imagem, com o fim de zombar da superstição dos aldeães. Como tínhamos as nossas espingardas, Tomás propôs-nos o fuzilamento da estátua. Francisco acolheu a proposta com uma estrondosa gargalhada. Timidamente, e receando mostrar-me menos corajoso do que meus companheiros, tentei dissuadi-los daquele propósito que me desgostava, ao lembrar-me de minha mãe.
Tomás carregou a sua espingarda e atirou. A bala atingiu a estátua na fronte. Francisco fez o mesmo e a atingiu no peito.
— Vamos — disseram-me eles. — Agora tu.
Não ousei resistir, fiz a pontaria. Trêmulo, fechei involuntariamente os olhos, e a bala atingiu a estátua…
— Numa perna? — perguntou o médico.
— Sim, numa perna, por cima do joelho, no lugar onde estou ferido. Como vedes, não sararei mais…
Depois desta bela proeza, íamos de novo tomar o nosso caminho quando uma mulher velha, que nos viu, disse:
— Ides para a guerra, mas a ação que praticastes não vos tornará felizes.
Tomás ameaçou-a. Eu estava pesaroso com nossa ação, e Francisco, menos preocupado do que eu, não estava porém disposto a divertir-se. Por isso impedimos o nosso companheiro de dar curso ao seu ressentimento.
Terminamos depois, com mil dificuldades, a nossa jornada, e por mais de uma vez lamentamos a nossa sorte. Naquela mesma tarde entramos nas fileiras de nosso regimento. Passados alguns dias, tivemos um encontro com o inimigo. Confesso-vos que, quando entrava em combate, era sem entusiasmo, e instintivamente pensava na imagem da Virgem.
Entretanto, tudo correu bem e tivemos uma vitória notável. Tomás distinguiu-se. A ação estava terminada, o inimigo derrotado, e o coronel acabava de suspender a marcha, quando um tiro partido de um rochedo — e parecia vir do céu — estrondeou. Tomás rodou sobre si mesmo e caiu fulminado, a face contra o solo. Francisco e eu corremos para o levantar, porém estava sem vida. A bala o atingira no meio da testa, entre os olhos, no lugar onde a bala de sua espingarda, alguns dias antes, tinha atingido a imagem. Francisco e eu, silenciosos, mais pálidos que a morte, olhamo-nos mutuamente.
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dois amigos
No barracão, Francisco estava perto de mim, mas não dormia. Esperava que ele me falasse, para lhe aconselhar que rezasse. Como porém ele guardasse silêncio, não ousei entabular a conversação sobre o pensamento que nos conservava acordados.
No dia seguinte o inimigo voltou com força. Desde que o percebemos, Francisco deu-me um aperto de mão, dizendo:
— É hoje minha vez. Quanto és feliz pela má pontaria!
O desgraçado não se enganara. Desta vez fomos derrotados e tivemos que bater em retirada por muito tempo. Porém, Francisco e eu saímos incólumes. Vã esperança! Um tiro partiu de um fosso, onde jazia um espanhol mortalmente ferido, e Francisco caiu com o peito atravessado de lado a lado. Ah, Doutor, que morte! Rolava no chão, pedindo um padre. Os que estavam perto encolheram os ombros. Logo que expirou, deixaram-no no meio do caminho.
Desde aquele momento, fiquei convencido de que eu não tardaria a ser ferido, e resolvi firmemente confessar o meu sacrilégio ao primeiro padre que encontrasse. Por infelicidade, não encontrei nenhum. Muitos fatos se passaram sem novidade, e pouco a pouco os meus terrores cessaram. Com eles desvaneceram-se as minhas boas resoluções.
Quando fomos chamados à França, já havia sido promovido a sargento, e não pensava mais no crime, nem no arrependimento nem no castigo. Tudo, porém, me foi lembrado perto da fronteira, a um dia de caminho da aldeia da imagem. Por um acidente inexplicável, um tiro partiu de nossas fileiras e me atingiu onde estais vendo. Assim se cumpriu a profecia da velha, que nos tinha dito após o sacrilégio:
— Ides para a guerra, mas a ação que praticastes não vos tornará felizes!
Os meus dois camaradas morreram e eu estava ferido. Contudo, a princípio a ferida não apresentava mau aspecto, e como o cirurgião me dissesse que em breve sairia do hospital, cheguei a convencer-me disso. Qual não foi meu pavor e a surpresa dele, quando viu que esta chaga estava minada destes vermes que têm resistido à vossa ciência. Há vinte anos, Doutor, que tenho esta ferida. Experimentei todos os remédios, e nenhum deu resultado. Embora eu peça a Deus a cura, não devo lastimar-me e nem me lastimo. Esta ferida tem sido um remédio para muitas almas, e para a minha sobretudo.
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Sei que se chegar ao fim de minha vida como é preciso que chegue — isto é, cristão e penitente — devo-o à minha terrível ferida. Então terei ocasião de me alegrar por ter ficado coxo. Porque, se duvido da cura, não duvido da misericórdia, e espero firmemente morrer na graça de Deus por intercessão daquela que ultrajei.
(Luiz Veuillot, “Cá e Lá” – Livro VII)
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