5. A morte de São Luis no comando da 9ª Cruzada. Seu testamento.
Em 1270, na cidade de Cartago, enquanto preparava o assalto de Túnis, no Norte da África, São Luis IX, chefe da 9ª Cruzada foi atingido pela peste. Sentindo a morte se aproximar, mandou chamar seu filho e lhe disse:
“’Beau fils’, caro filho, a primeira coisa que eu te ensino e te ordeno guardar, é que de todo coração ames a Deus. Porque sem isto, nenhum homem pode ser salvo. E cuida bem de nada fazer que Lhe desagrade. Porque deverias antes desejar sofrer todos os tipos de tormentos, do que pecar mortalmente.“Se Deus te envia a adversidade, recebe-a benignamente, e dá-Lhe graças: pensa que tu O desserviste freqüentemente, e que o todo redundará em teu favor. Se te dá prosperidade, agradece-Lhe muito humildemente, e atenta para que não fiques pior pelo orgulho ou por outra razão. Porque não se deve tentar a Deus por seus dons.
“Toma muito cuidado de ter em tua companhia homens prudentes e leais, que não sejam cheios de cobiças, sejam homens da Igreja, de religião, seculares ou outros. Foge da companhia dos maus, e esforça-te em escutar as palavras de Deus, e retém-nas em teu coração.
“Faze também equidade e justiça a cada um, tanto aos pobres quanto aos ricos. E com os servidores, que te temem e te amam como mestre; sê leal, liberal e rijo de palavras. E se surgir alguma controvérsia ou demanda, seja por ti ou contra ti, indaga até atingir a verdade. Se fores advertido de ter com certeza alguma coisa de outrem, tenha sido obtida por ti ou por teus predecessores, devolve-a incontinente.
“Olha com toda diligência como as gentes e os súditos vivem em paz e equidade sob teu reino, em especial as boas aldeias e cidades, e alhures. Mantém as franquias e liberdades, que teus ancestrais mantiveram e guardaram, e conserva-as com favor e amor.
“Evita mover guerra contra católicos, sem grande conselho, e somente se não a puderes obviar. Se houver guerra e querelas entre teus súditos, apazigua-as o mais breve que puderes.
“Cuida frequentemente de teus bailios, prebostes e outros oficiais, e indaga sobre seus governos, a fim de que se houver alguma coisa neles a repreender, que tu o faças.
“E te suplico, meu filho, que ao meu fim, tenhas lembrança de mim e de minha pobre alma; e me socorras com missas, orações, preces, esmolas e boas obras, por todo teu reino. E me outorgues partilha e porção em todas as boas obras que fizeres.
“Dou-te toda a bênção que um pai possa dar a seu filho, rogando à Trindade do Paraíso – ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo – que te guardem, e protejam de todos os males; para que possamos, depois dessa vida mortal, estar juntos diante de Deus, e dar-Lhe graças e louvores sem fim”.
Todo homem prestes a morrer, desenganado das coisas do mundo, pode dirigir sábias instruções a seus filhos. Mas quando, tais instruções são apoiadas pelo exemplo de toda uma vida de inocência; quando elas saem da boca de um grande príncipe, de um guerreiro intrépido, e do coração mais simples que jamais houve; quando são as últimas expressões de uma alma divina que entra nas moradas eternas, então feliz o povo que pode se glorificar dizendo:
“O homem que escreveu essas instruções era o rei de meus pais!”
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A doença fazendo progressos, Luis pediu a extrema-unção. Ele respondeu às preces dos agonizantes com uma voz tão firme quanto se estivesse dando ordens no campo de batalha.
Pôs-se de joelhos ao pé de seu leito para receber o santo viático, e sustentaram o braço desse novo São Jerônimo, na última comunhão. Desde este momento ele pôs fim aos pensamentos terrenos, e deu-se por quitado em relação a seus povos.
Qual monarca jamais cumpriu melhor seus deveres! Sua caridade estendeu-se então a todos os homens: rogou pelos infiéis, que foram ao mesmo tempo a glória e a infelicidade de sua vida; invocou os santos padroeiros da França, desta França tão cara a sua alma real.
Na segunda-feira pela manhã, 25 de agosto, sentindo que sua hora se aproximava, ele se fez estender sobre um leito de cinzas, onde permaneceu com os braços cruzados sobre o peito, e os olhos elevados para o céu.
Não se viu senão uma vez, e não se reverá jamais semelhante espetáculo: a frota do Rei da Sicília mostrava-se ao horizonte; o campo e as colinas cobertas pelo exército dos mouros. Em meio às ruínas de Cartago, o campo dos católicos oferecia a imagem da mais desoladora dor: nenhum ruído fazia-se ouvir; os soldados moribundos saiam dos hospitais arrastando-se em meio às ruínas para se aproximar de seu Rei expirante.
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Luís estava cercado de sua família em lágrimas, dos príncipes consternados, das princesas desfalecentes. Os enviados do Imperador de Constantinopla encontravam-se presentes a essa cena: eles puderam contar à Grécia a maravilha de um passamento que Sócrates teria admirado.
Do leito de cinzas onde São Luís exalava o último suspiro, se visualizava o rio Útico, cada um podia fazer a comparação da morte do filosofo estóico e do filósofo católico.
Mais feliz que Catão, São Luis não foi obrigado a ler um tratado da imortalidade da alma, para se convencer da existência de uma vida futura: dela encontrava a prova em sua religião, suas virtudes e suas infelicidades.
Enfim, às três horas da tarde, o Rei, exalando seu último suspiro, pronunciou distintamente estas palavras: “Senhor, entrarei em vossa casa, e vos adorarei em vosso santo Templo”. E sua alma voou para o Santo Templo, onde ele era digno de habitar.
Ouve-se então reboar a trombeta dos Cruzados da Sicília: sua frota chega cheia de alegria e carregada de inúteis reforços. Não se responde a seu sinal. Carlos d’Anjou se surpreende e começa a temer alguma desgraça. Aborda a margem, vê as sentinelas com as lanças revertidas, exprimindo sua dor menos pelo luto militar do que pelo abatimento de seus rostos.
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Precipita-se à tenda do Rei seu irmão, encontra-o estendido morto sobre a cinza. Lança-se sobre as relíquias sagradas, rega-as com suas lágrimas, beija com respeito os pés do santo, e dá mostras de ternura e de lamentação que não se teria esperado de uma alma tão altiva.
O rosto de Luis tinha ainda as cores da vida e seus lábios estavam vermelhos.
Carlos obtém as entranhas de seu irmão, que fez depositar em Montréal, próximo de Salerno.
O coração e os ossos do príncipe foram destinados à Abadia de Saínt-Denis. Mas os soldados não quiseram deixar partir antes deles esses restos queridos, dizendo que as cinzas de seu soberano eram a salvação do exército.
Aprouve a Deus ligar ao túmulo do grande homem uma virtude que se manifestava por milagres.
A França que não podia consolar-se de ter perdido na terra um tal monarca, declarou-o seu protetor no Céu.
Luís colocado no rango dos santos torna-se assim para a pátria uma espécie de Rei eterno. Logo elevaram-se em sua honra igrejas e capelas mais magníficas do que os palácios simples nos quais havia passado sua vida.
Os velhos cavaleiros que o acompanharam em sua primeira Cruzada, foram os primeiros a reconhecer o novo poder de seu chefe:
“E eu fiz construir, diz o sire de Joinville, um altar em honra de Deus e ‘monseigneur saint Loys'“.
A morte de Luís, tão tocante, tão vitoriosa, tão tranquila, por onde se encerra a história de Cartago, parece um sacrifício de paz oferecido em expiação dos furores, das paixões e dos crimes dos quais esta cidade infortunada foi tão longamente o teatro.
Autor: François-René de Chateaubriand, « Itinéraire de Paris à Jerusalem », Garnier-Flammarion, Paris, 1968, pp. 434 a 441.
Fonte: As Cruzadas
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