Pois ainda que seus idealizadores tenham deixado de retratar fielmente a vida atribulada de Martinho Lutero, movidos claramente pela ideologia apaixonada que visou a reabilitação pública do monge alemão e o bem da Igreja luterana, usaram e abusaram do princípio escandaloso proposto pelo próprio Lutero: mentir a vontade, sem remorso, dizer boas e grossas mentiras!
De antemão se sabia que o filme seria tendencioso, pois fora patrocinado por um fundo luterano milionário – Thrivent – bem como pela Federação Luterana. Mas o resultado ultrapassou em muito as piores perspectivas:
Fizeram do soberbo Lutero um religioso humilde!
Do mentiroso Lutero, fizeram um homem leal!
Do imoral Lutero, imaginem só, fizeram dele um santo!
Autor: Marcos Libório
Não que as cenas do filme sejam todas inventadas. Só algumas.
Os luteranos – embora tivessem o aval do mestre – preferiram mentir pela mentira menos escancarada, que é a omissão, embora em algumas passagens tenham distorcido os fatos abertamente.
O filme peca então majoritariamente pela omissão, para que o escândalo não fosse tão grande. Pois no dizer pitoresco e muito verdadeiro do Padre Vieira, “a omissão é um pecado que se faz não fazendo” (sermão da Primeira Dominga de Advento).
Quando se mente claramente, negando fatos verdadeiros, a consciência teima em reclamar uma reparação, ainda que anestesiada pelo princípio luterano da mentira por uma boa causa. Com a omissão – veja-se que conveniente – é muito mais fácil silenciar a consciência, embora seus efeitos deletérios possam ser equivalentes, ou mesmo superiores aos de uma mentira aberta.
Ainda que haja muitas cenas que realmente ocorreram, raras vezes se mostra um equilíbrio entre a atitude de Lutero e a contrapartida Católica. A intenção é clara: fazer de Lutero um herói da fé, um campeão da liberdade, perseguido pela tirania do Papa.
Mesmo quando o filme mostra Lutero em situações constrangedoras, como, por exemplo, em suas discussões doentias com o demônio, sempre se sugere ao espectador que a culpa é da Igreja.
Nessa linha vem bem a propósito o comentário de Steven Greydanus:
“Entre protestantes sensatos a Reforma freqüentemente tem sido chamada de“trágica necessidade”. Em Lutero, (…) a Reforma é vista como um todo positivo, um triunfo da liberdade religiosa e da liberdade de consciência.” (Greydanus)
Para que o leitor não pense que acusamos o pseudo-reformador alemão gratuitamente, registramos a seguir algumas de suas muitas mentiras, que foram instrumento (iníquo) amplamente utilizado em sua revolta.
Depois da leitura da confissão em Augsburg, Melanchthon e os demais luteranos foram questionados pelos católicos na Confutatio, devendo então ceder em alguns pontos. Melanchthon estava disposto ao sacrifício em nome da paz, mas Lutero era radicalmente contra, o que provocará a defesa intransigente da confissão protestante através da Apologia. Lutero então escreveu a Melanchthon do castelo de Cobourg, incentivando o amigo a se expressar de forma ambígua:
“(…) Pois, uma vez conseguida a paz e escapado à violência, podemos facilmente fazer remendos para nossos ardis (mentiras) e faltas (tricks (lies) and failings), porque a misericórdia de Deus prevalece sobre nós. (…)” (Grisar: 388)
Quando voltou a Wittemberg em 1522, Lutero expulsou os radicais e restabeleceu a aparência de Missa, parecendo defender a lei e a ordem para poder dominar a situação.
Porém:
Porém:
“(…) os mesmos paramentos foram usados e (…) os mesmos antigos hinos em latim eram ouvidos. A hóstia era elevada e exibida na Consagração. Aos olhos do povo era a mesma Missa de sempre, exceto que Lutero omitiu todas as orações que representavam a função sagrada como sacrifício.” (Grisar: 220)
E nessa mesma linha de imposição do novo culto sem despertar a atenção, atraindo o apoio popular:
“O ofício divino foi essencialmente alterado, mas as suspeitas foram evitadas ao máximo pela retenção da forma externa, de modo que as pessoas comuns, como dizia Lutero, “nunca tomariam consciência disso. ”Era para ser feito “sem escândalo”.” (Grisar: 221)
Ao estudante Martin Weier, Lutero recomendou fingir para não escandalizar:
“(…) jejuar, rezar, assistir Missa, e venerar os santos, exatamente como vinha fazendo antes,”mas que tente instruir seu pai o melhor possível; ele não erraria se “tomasse parte na Missa e outras profanações (sic) por causa do pai.” (Grisar: 221)
Visando sempre a reforma dissimulada, já em 1523 Lutero compôs um tratado sobre a Missa onde ainda mantinha vários ritos da Igreja católica “por causa daqueles fracos na fé”, enquanto alterava substancialmente o cerne do Santo Sacrifício da Missa. (Grisar: 249)
É por essas e outras que amigos de longa data de Lutero – como Erasmo – o acusavam nestes termos:
“Revelarei a todos que mestre insigne és em falsificar, exagerar, maldizer e caluniar. Mas já toda gente o sabe… Na tua astúcia sabes torcer a própria retidão, desde que o teu interesse o requeira. Conheces a arte de mudar o branco em preto e de fazer das trevas luz”. (Grisar, Luther, II, 452 e ss, apud Franca, IRC: 200, nota 96)
Erasmo – longe de ser modelo de católico – irá apartar-se de Lutero quando a controvérsia sobre o livre arbítrio mostrar claramente que o monge alemão estava indo além da reforma a que supostamente havia se proposto, e querendo destruir mesmo a essência do Cristianismo. Conhecendo a capacidade do humanista, Lutero implorou a Erasmo que não o atacasse:
“Não escreva contra mim, nem aumente o número e a força de meus oponentes; particularmente não me ataque por publicações (through the press), e eu, de minha parte, me absterei também de atacá-lo”. (Grisar: 269)
E se a mentira era companheira de Lutero, sabemos que tal vício normalmente acompanha e justifica outros vícios. No caso luterano, era a soberba que transbordava de sua boca incontrolável, como na carta a Henrique VIII:
“Através de mim Cristo começou Sua revelação sobre as abominações no lugar santo.”
E ainda:
“Estou certo que meus dogmas vêm do céu.” (Grisar: 261)
Vemos também sua soberba em confissões como esta:
“Muito embora a Igreja, Agostinho e os outros doutores, Pedro e Apolo e até um anjo do céu ensinem o contrário, minha doutrina é tal que só ela engrandece a graça e a glória de Deus e condena a justiça de todos os homens na sua sabedoria.”(Weimar, XL, 1 Abt., 132; apud Franca, IRC: 179)
Lutero tinha suas doutrinas em tão doentia estima que chegou a dizer que eram a expressão máxima da verdade, mesmo “(…) se Deus ou Cristo anunciarem o contrário” (sic!) (Grisar: 497)
E se sua doutrina era tão sublime, evidentemente o monge rebelde não podia tolerar concorrência, embora empunhasse continuamente o estandarte de libertador:
“Ninguém deve erguer-se contra mim. (Propos de table, n. 1484) (…) “Cada um deve andar no freio”, para retomar precisamente sua expressão, freio, cujas rédeas estão, naturalmente, em suas mãos.” (Brentano: 132)
Quanto às críticas à sua tradução da Bíblia, Lutero reagia, entre outras amabilidades:
“Pela Graça de Deus, considero-me mais sábio do que todas as vossas universidades com seus sofistas.” (Brentano: 180)
É claro que o fundo milionário Thrivent e a Federação Luterana Mundial não mostraram nada disso no filme.
Sua intenção era promover Lutero a qualquer preço.
Mostraram o Lutero mito, E esconderam o Lutero histórico.
Essa separação entre Lutero mito e real já era reconhecida no século XIX pelo teólogo luterano Krogh-Tonning:
“Cumpre distinguir dois Luteros: um mítico, outro histórico. Ordinariamente só se ocupam do primeiro, ornado de todas as perfeições. Quando alguém quer apreciá-lo calça o coturno; olham-no do alto; e fazem tábua rasa da realidade. (…)” (Franca, PB: 306)
Os milionários americanos e os luteranos alemães calçaram o coturno e fizeram tábua rasa da realidade para prestar um culto a Lutero. Isso é incontestável e não surpreende.
O que intriga é saber como os luteranos puderam fazer um filme tão contrário à personalidade e à realidade histórica de Lutero, e não haver praticamentenenhuma reação?
Essa é a pergunta a ser feita.
Se o rebelde alemão era tão escandaloso – conforme mostraremos a seguir – como é que os luteranos puderam mostrar o Lutero mítico, e ninguém abre um livro para revelar o Lutero histórico?
Antes de analisarmos as mentiras do filme, tentemos responder essa pergunta fundamental.
Parece-nos que três fatores tornaram possível esse filme mitificador:
1. A ignorância universal sobre Lutero
Esse ponto nos parece pacífico, e pode ser confirmado pelas inúmeras cartas que recebemos de protestantes (e mesmo católicos) que não fazem a mínima idéia de quem tenha sido Martinho Lutero, nem da realidade histórica em que ele surgiu; só uns poucos eruditos conhecem e estudam a vida real do monge rebelde.
2. O papel fundamental do ecumenismo, que calou as vozes oposicionistas.
Apenas uma confissão nos parece suficiente sobre esse ponto. Escreveu o famoso teólogo D. Kloppenburg:
“Na década de 50 publiquei (…) livros, cadernos, folhetos e artigos sem conta. Era antes do Concílio Vaticano II (1962-1965), quando defendíamos nossa fé cristã e nossa Santa Igreja contra os ataques de seus adversários. (…) Veio então o Concílio com seu apelo ecumênico para o diálogo e a união. Dizia-se que o Vaticano II acabara de vez com a apologética. Em conseqüência e obediente, me afastei da liça. (…) de fato, depois não houve nem diálogo nem muito menos união”.(Kloppenburg: 7) D. Kloppenburg falava do espiritismo, mas podemos estender suas considerações a toda apologética.
Se mesmo apologistas notórios foram envolvidos nesse utópico ecumenismo, entende-se perfeitamente a ausência de reação católica.
Assim, dirigindo-se a um público desconhecedor de Lutero, e sem o risco de serem desmascarados pelos Católicos, os luteranos poderiam disseminar livremente sua noção de que Lutero foi um grande herói, um campeão da fé que libertou consciências aprisionadas pela Igreja Medieval.
Mas só a ignorância sobre Lutero e o silenciamento dos oponentes não bastava.
Faltava ainda uma contribuição fundamental, uma falsa noção potencializada pela sociedade consumista e refém intelectual dos meios de comunicação, tal como é hoje a sociedade ocidental: a noção de que os fatos narrados no filme são a expressão da verdade.
3. Vivemos uma Era da simulação ou do espetáculo
Daí vem em nosso auxílio a definição de Era da simulação ou do espetáculo(Wood: 100). Nessa Era da simulação, onde predominariam a imagem e a passividade, as pessoas aceitariam os pseudo-eventos do filme como se fossem verdades históricas. Numa época como essa, a sociedade baseada na imagem criaria e aceitaria representações superiores ao mundo real, e o homem seria espectador de um grande show: “O Homo spectator não vive, apenas contempla”.(Wood: 103) Será que já não vimos algo parecido com isso?
Com asseveram seus teóricos, na Era da simulação não importa mais o ser nem oter, mas o parecer. Pouco importa a realidade: a representação tem apenas de ser convincente. E convincente é qualidade que não podemos subtrair aos filmes modernos.
Numa sociedade que aceita tais pressupostos, pouco importa se os eventos do filme Lutero ocorreram ou não: eles têm apenas que convencer o espectador: averdade cede então espaço à verossimilhança.
Nesse contexto, o cinema passa a ocupar um papel fundamental, deixando de serentretenimento para ser efetivamente instrumento pedagógico:
“A realidade transforma-se em produção cinematográfica e as experiências reais passam a ser julgadas contra seu correspondente fílmico, em uma posição desvantajosa.” (Wood: 103)
Embora essa abordagem tenha exageros evidentes, ela é suficientemente apropriada para definir o impacto que os assim chamados “filmes históricos”exercem hoje sobre a sociedade ocidental.
Valendo-se então desses três pontos, os milionários da Thrivent e os alemães daFederação Luterana puderam dar largas à sua criatividade, sem receio de serem importunados em sua aventura mitificadora.
Nessa linha, Lutero optou pela apresentação propagandística pura e simples. A problemática doutrinária foi sacrificada em nome de uma idealização do Luterohumano, do Lutero libertador, do Lutero destemido.
Ao ignorar as péssimas doutrinas de Lutero, seus ataques de fúria, seu orgulho indisfarçável, seus vícios constrangedores e sua linguagem vulgar, os produtores de Lutero escolheram a via fácil, visando influenciar o grande público.
É o que trataremos a seguir, apresentando a nossos leitores a verdade dos fatos em confronto com as “boas e grossas mentiras” luteranas.
Importa notar que a maioria dos autores por nós citados é de Católicos, mas que invariavelmente nos remetem às fontes do protestantismo, como mui freqüentemente as obras completas de Lutero na edição de Weimar e à sua parte mais controversa, as Conversas à Mesa (Propos de table),conjunto de anotações de frases de Lutero colhidas por seus hóspedes, e que compõem um retrato bastante vivo do rebelde alemão.
Dos autores citados, Grisar é um dos mais condescendentes com o comportamento grotesco de Lutero, e, portanto, o leitor terá diante de si um historiador dos mais imparciais. E Brentano, cuja posição é escancaradamente favorável a Lutero, embora nunca revele claramente sua religião tem, todavia as páginas mais duras sobre o ex-monge, que ele, embora preso ao compromisso de historiador, não se furte de tentar sempre justificar.
Nem citamos o Denifle… Deixemos este historiador Dominicano para uma biografia mais completa…
Assim, damos citações e relatos sobre Lutero do modo mais histórico e imparcialquanto é possível.
Se as frases e os pensamentos luteranos parecerem ao leitor muito chocantes, é porque Lutero não tinha meias palavras.
O que Lutero pensava – e pensava mal, muito mal – não tinha escrúpulos em externar. Essa foi a desgraça da Igreja e do povo da Alemanha, e por extensão da civilização ocidental.
Os negritos nas citações são nossos, a menos que citado diferentemente.
As citações trazem o sobrenome do autor seguido da página da obra, cujas referências se encontram ao final do trabalho.
Índice do Filme Lutero
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