O cânon 28 de Calcedónia
No IV Concílio Ecuménico reunido em Calcedónia em 451, aprovou-se entre outros o seguinte cânon vigésimo oitavo:
Citação:
Seguindo em todas as coisas as decisões dos santos Padres, e reconhecendo o cânon, que acaba de ser lido, dos Cento e Cinquenta bispos amadíssimos de Deus (que se reuniram na cidade imperial de Constantinopla, a qual é a Nova Roma, em tempos do imperador Teodósio de feliz memória), nós também estabelecemos e decretamos as mesmas coisas concernentes aos privilégios da Santíssima Igreja de Constantinopla, que é a Nova Roma. Pois os Padres rectamente concederam privilégios ao trono da velha Roma, porque era a cidade régia. E os Cento e Cinquenta religiosíssimos bispos, motivados pela mesma consideração, deram iguais privilégios (isa presbeia) ao santíssimo trono da Nova Roma, julgando justamente que a cidade que é honrada com a Soberania e o Senado, e goza de iguais privilégios com a antiga Roma imperial, devia em assuntos eclesiásticos também ser magnificada como ela é, e contada a seguir a ela, de modo que, nas dioceses do Ponto, da Ásia e da Trácia, os metropolitanos somente e os bispos também das dioceses referidas que haja entre os bárbaros, deviam ser ordenados pelo referido santíssimo trono da santíssima Igreja de Constantinopla; ordenando cada metropolitano das referidas dioceses, junto com os bispos da sua província, os seus próprios bispos provinciais, como foi declarado pelos divinos cânones; mas que, como se disse acima, os metropolitanos das dioceses mencionadas acima deviam ser ordenados pelo arcebispo de Constantinopla, depois de as eleições apropriadas terem sido realizadas segundo o costume e terem sido comunicadas a ele. Nicene and Post-Nicene Fathers, Second Series (= NPNF2). General Editors Philip Schaff, Henry Wace. Vol. 14, The Seven Ecumenical Councils. Volume Ed. Henry R. Percival. Grand Rapids: Eerdmans , Reprint 1988, p. 287. |
Este cânon foi o último dos propostos na Sessão 16ª de 31 de Outubro. Os legados papais se tinham retirado (apesar de não desconhecerem a proposta), mas apresentaram no dia seguinte, na última sessão, um protesto formal. O cânon permaneceu em todo o caso: tinha sido subscrito licitamente por quase duzentos bispos, entre os quais estavam os de sedes que podiam sentir-se menosprezadas pela decisão (Antioquia e Jerusalém). Diversas desculpas dos legados, que incluíram o apelo a um acréscimo romano a um cânon do Concílio de Niceia, foram rejeitadas pelo sínodo.
Os «Cento e Cinquenta religiosíssimos bispos» a que se alude foram os que participaram no II Concílio Ecuménico (Constantinopla, 381). O cânon terceiro de dito Concílio estabelecia:
O bispo de Constantinopla, no entanto, terá a prerrogativa de honra depois do bispo de Roma; porque Constantinopla é a Nova Roma. NPNF2 14:178 |
O Papa Leão Magno recusou-se a subscrever o cânon 28 de Calcedónia e desconheceu o cânon 3 de Constantinopla sobre o qual aquele se baseava, com base em que nunca tinha sido enviado a Roma e que era uma violação da ordem nicena. A primeira coisa era provavelmente falsa, e a segunda o era com toda a certeza. O cânon sexto de Niceia (325) não dava uma ordem de honra, mas estabelecia certos privilégios para as sedes de Alexandria e Antioquia:
Que prevaleçam os antigos costumes no Egipto, Líbia e Pentápolis, que o bispo de Alexandria tenha jurisdição em todas estas, já que o mesmo é habitual também para o bispo de Roma. De igual modo em Antioquia e nas outras províncias, que as Igrejas conservem os seus privilégios... NPNF2 14:15 |
Contudo, em Roma e suas zonas de influência este cânon circulava com o acréscimo «A Igreja de Roma teve sempre a primazia».
Mas os assentimentos dos bispos, que se opõem às regulações dos santos cânones compostos em Niceia em conjunto com a sua fiel Graça, não os reconhecemos, e pela autoridade do bem-aventurado Apóstolo Pedro os anulamos absolutamente nos termos mais amplos, obedecendo em todos os casos eclesiásticos àquelas leis que o Espírito Santo estabeleceu pelos 318 bispos para a pacífica observância de todos os sacerdotes de tal sorte que mesmo se um número muito maior sancionasse um decreto diferente do deles, qualquer coisa que fosse oposta à constituição deles não mereceria nenhum respeito. Ep. 105 (NPNF2 12:77) |
O escrito dogmático de Leão tinha sido recebido pelo Concílio com expressões tais como "Por boca de Leão falou Pedro!" e "Leão fala como Cirilo!" (em referência a Cirilo de Alexandria, campeão da ortodoxia em Éfeso, 431), e da elogiosíssima e quase aduladora carta que os orientais lhe dirigiram (Ep. 98). No entanto, os seus inflamados protestos contra o cânon 28 não tiveram nenhum resultado sobre os orientais. A sede romana tinha um lugar de honra entre os cinco patriarcados que incluíam também Constantinopla, Alexandria, Antioquia e Jerusalém, mas não podia mudar a decisão de um Concílio Geral.
Os Padres Conciliares receberam a leitura do documento de Leão com entusiasmo, declarando que «Pedro tinha falado através de Leão». Isto não era mais do que o que Leão cria acerca de todas as declarações papais ... Os bispos em Calcedónia, porém, não faziam tal suposição. Eles reconheciam a especial dignidade e a honra da sede apostólica, mas não supunham por isto que qualquer coisa que dissesse o seu bispo devia ser verdade, e parecem ter crido que nesta particular ocasião Pedro tinha falado por meio de Leão. Eles adoptaram a solução dele ao problema, portanto, não meramente porque era sua, mas porque a julgaram verdadeira. Para sublinhar isto, no cânon 28 do Concílio reafirmaram o ensino do Concílio de Constantinopla, de que Constantinopla tinha precedência depois de Roma, «porque é a Nova Roma». Eamon Duffy, Saints and Sinners: A History of the Popes. New Haven: Yale University Press, 1997, p. 35. |
Numa atitude escandalosa, Leão demorou por dois anos a sua ratificação dos cânones dogmáticos de Calcedónia – ratificação que era esperada de todos os bispos, e particularmente dos patriarcas - por causa do aborrecido cânon 28. Também os seus sucessores imediatos não admitiram reconhecer a Constantinopla, a «Nova Roma», a condição de segunda sede em honra.
No Oitavo Concílio Geral em 869 [IV Constantinopla] os legados romanos (Mansi, XVI, 174) reconheceram Constantinopla como segunda na categoria patriarcal. Em 1215, no IV Concílio Laterano (op. cit., XXII, 991), isto foi formalmente admitido para o novo patriarca latino, e em 1439, no Concílio de Florença, para o patriarca grego (Hefele-Leclercq, Hist. des Conciles, II, 25-27). The Catholic Encyclopedia, vol. 4 (1908), s.v. Constantinople, First Council of. |
De modo que apesar de toda a argumentação de Leão e do recurso à sua «autoridade apostólica», por fim, inclusive a Igreja de Roma acabou assentindo o estabelecido pelos Concílios I de Constantinopla e de Calcedónia.
Isto é, a prerrogativa atribuída à Igreja de Constantinopla é, apesar da oposição do legado romano, decretada pelo sínodo. Assim terminou o Concílio de Calcedónia depois de ter-se estendido por três semanas. Não posso entender como é possível, depois de ler as actas precedentes, imaginar-se sequer por um instante que os bispos deste Concílio considerassem os direitos em discussão como de origem divina, e que o ocupante da Sede de Roma fosse, jure divino, supremo sobre todos os pontífices. É bem possível, claro está, afirmar, como alguns fizeram, que as actas tais como as temos foram mutiladas, mas o argumento implica não só muitas dificuldades mas também não poucos absurdos; e não obstante não posso senão pensar que até esta hipótese extrema é preferível a qualquer tentativa de reconciliar as actas como as temos agora com a aceitação por parte dos membros do concílio da doutrina de uma supremacia papal jure divino tal como é agora sustentada pela Igreja Latina. Hist Conc 3:428 (citada em NPNF2, 14:295). |
FONTE: CONHECEREIS A VERDADE